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“Recompensa mal um mestre
aquele que se contenta em ser discípulo”.
(Zaratustra)
A filosofia de Friedrich Nietzsche é a expressão de um pensamento que se dobra e redobra em si mesmo, nos soando muitas vezes paradoxal; porém, esse pensamento na medida em que se constrói dentro e além de suas próprias fronteiras, se afirma enquanto força e vontade – sendo essa a tarefa do filósofo enquanto espírito livre. Entretanto, ao adentrar nesse mundo filosófico é preciso, primeiramente, entender até mesmo a filosofia como uma interpretação, isto é, um ponto de vista de um autor; portanto, não há como negar a intenção de quem escreve, de quem pensa e, devido a isso, sempre devemos nos perguntar, como o filósofo mesmo afirma: “(...) a que moral isto (ele) quer chegar?” (NIETZSCHE, 2005, p.12). Portanto, devemos nos perguntar antes de mais nada: a que moral Nietzsche quer chegar?
Primeiramente, na minha interpretação, a filosofia de Nietzsche é mais um apelo à vida do que um pensamento filosófico rigoroso – isso não é desqualificar a sua filosofia, muito pelo contrário -, pois dentro do corpo está a vida, a vontade, o querer, a moralidade, tudo extravasado pela vontade de poder [1]. Em Nietzsche, o pensamento é o corpo, as experiências pensadas são sentidas – não havendo precedência entre uma e outra -, e o que justifica um argumento é aquilo que se viveu, como ele mesmo diz: “Para aquilo que a gente não alcança através da vivência, a gente não tem ouvidos” (Idem, 2006, p.71). Ora, só conseguimos entender a filosofia do filósofo na medida em que vivemos ela. Todavia, viver a filosofia de alguém já é um sinal de “fraqueza”, pois se faz necessário criar a sua própria vida através do seu próprio pensamento – a sua própria afirmação enquanto espírito livre. Não só isso, o próprio filósofo já pensa em uma filosofia da singularidade, dos conceitos criados a partir da potência de artista dos “filósofos do futuro”, como ele mesmo diz: “'Meu juízo é meu juízo: dificilmente um outro tem direito a ele' – poderia dizer um tal filósofo do futuro” (Idem, 2005, p.44). Assim, podemos pensar que a filosofia de Nietzsche é a realização daquilo que Kant afirma ser o esclarecimento: ter coragem para fazer uso do seu próprio entendimento sem auxílio de outrem [2]; pois se em uma “filosofia do futuro” os filósofos abrem mão de formar “escolas”, eles também abrem mão de servir-se de teorias que não são suas para dar sentido às suas vidas. Na filosofia de Nietzsche, portanto, se tomarmos ele como um dos realizadores do esclarecimento, o filósofo se torna só, ele prefere ser só, pois é isso que o torna livre.
A liberdade desse filósofo do futuro, que toma as rédeas de sua própria vida, entretanto, é paga a duras penas, tendo em vista que ela se afirma no conflito de forças que é a vida. Para o Nietzsche, ao meu ver, a vida é um absurdo, ela não tem um sentido, o sentido é dado pelo sujeito vivente. Se tornar um sujeito livre, portanto, é admitir que a vida não é uma calmaria, mas uma luta de desejos atravessados pelas diversas construções de sentidos e moralidades construídas a cada instante por cada pessoa. Um filósofo do futuro, o espírito livre, seria como um aventureiro, como um guerreiro que se coloca a desbravar uma floresta perigosa, onde a calma e a tranqüilidade não existe, como diz o filósofo:
O homem que se tornou livre, e muito mais ainda o espírito que se tornou livre pisa sobre o modo de ser desprezível do bem-estar, com o qual sonham o comerciante, o cristão, a vaca, a mulher, o inglês e outros democratas. O homem livre é um guerreiro (NIETZSCHE, 2000, p.95).
A partir disso, podemos pensar que o espírito livre admite a vida sem uma ordem organizada por um ente superior, em oposição ao cristão; ou sem uma sociedade bem ordenada, onde todos viveriam tranquilamente, em oposição ao democrata. Devido a isso, podemos concluir que a liberdade não é simplesmente um fim, algo que se efetiva para que todos os seres humanos possam viver em paz e em comunhão, como era o sonho do Idealismo Alemão. Ao contrário, a liberdade é um fardo, mas que é tomado corajosamente por aqueles que admitem a vida enquanto tal -
Imaginem um ser tal como a natureza, desmedidamente pródigo, indiferente além dos limites, sem intenção ou consideração, sem misericórdia ou justiça, fecundo, estéril e incerto ao mesmo tempo (...) (Idem, 2005, p.14).
Por isso, não podemos negar que a filosofia de Nietzsche é um apelo à vida e, portanto, um apelo à sensibilidade, tão negada com o “descobrimento” da subjetividade na modernidade. Entretanto, esse apelo à vida, por incrível que pareça, é um apelo ao caos.
Talvez ainda não tenha ficado claro a definição de vida para o filósofo alemão. Ao meu ver, a noção de vida está ligada muito mais a uma concepção biológica do que uma concepção metafísica, por isso, o termo se confunde com natureza, tendo em vista que, como vimos acima, a Vontade de Poder é a constituição elementar da vida daqueles seres que se nutrem, que possui metabolismo, isto é, seres naturais - “onde encontrei vida, encontrei vontade de poder [3]” (Idem, 1983, p.238) Entretanto, nos parece que o filósofo, na medida que se propõe a sepultar a metafísica, vai precisar se amparar na ciência de sua época. Tentaremos, portanto, esboçar um breve diálogo do autor com a ciência, em particular com Darwin, para pensarmos a noção de vida.
Na teoria darwiniana da evolução das espécies, temos a idéia de uma luta por auto-conservação, devido ao fato de os bens a natureza serem escassos. Darwin se utilizou da teoria de Thomas Malthus para fundamentar a sua idéia de evolução das espécies,
Estendendo a teoria de Malthus ao reino animal, Darwin sustentou que os meios de subsistência aumentavam em proporção menor que os animais, o que levava a desencadear-se entre estes o combate. Entendeu assim a luta pela existência como luta pela subsistência, vinculando-a à necessidade de auto-conservação (MARTON, 2000, p.55).
Ora, para Nietzsche não é a carência que fundamenta a força e a luta, mas o excesso, o transbordamento, como ele mesmo escreve acerca da teoria de Darwin:
No que concerne à celebre luta pela vida, ela me parece a princípio mais afirmada do que provada. Ela acontece, mas enquanto exceção; o aspecto conjunto da vida não é a indigência e a penúria famélicas, mas muito mais a riqueza, a exuberância, mesmo o desperdício absurdo – onde há luta, luta-se por potência... (NIETZSCHE, 2000, p.75).
Com isso, podemos perceber de certa forma uma noção de vida em Nietzsche, que não é fundamentada através de uma luta por subsistência, onde os homens, devido a escassez de bens naturais, matam-se entre si para manterem-se vivos. Portanto, não é esse “manterem-se vivos” o motor da vida, da natureza, muito menos um “adaptar-se melhor”, como vemos em Darwin, mas o extravasamento da potência que quer ainda mais potência, uma busca incessante de superar o seu “ser atual” por um devir constante. Nesse caso, se fôssemos pensar a situação de pessoas em miséria por exemplo, elas não passam fome devido à falta de alimentos na natureza, mas devido ao “absurdo desperdício” de outras pessoas, pois o desejo de querer mais de outras pessoas, em grande parte, implica na impossibilidade de outros poderem ser mais, e é nesse conflito que a vida se dá; portanto, não é a carência de bens naturais que fundamenta as desigualdades, mas o querer mais das pessoas, pois “(...) até mesmo na vontade daquele que serve encontrei vontade de ser senhor” (Idem, 1983, p.238); ou seja, no fundo qualquer pessoa gostaria de ser mais do que é, por extravasamento da força, inclusive, ser o seu oposto, pelo simples fato, de estar posto que todo ser vivente quer ser mais do que é – esse é o motor da vida.
Pensar a filosofia de Nietzsche como um apelo à vida, não é simplesmente dizer que devemos viver melhor o que já vivemos, pois viver significa viver, nada além disso. O que o filósofo nos faz pensar é que não há uma justificação racional para a vida, pois a vida não é um argumento, como há tempos os diversos filósofos nos propuseram; não que não seja possível argumentar acerca da vida, no entanto, quem fala da vida fala de um determinado ponto de vista, de uma determinada perspectiva – inclusive o próprio Nietzsche. Por isso, o autor desse texto, o meu “eu”, fica em uma encruzilhada com mais de quatro caminhos, pois não há como não colocar a minha interpretação, acerca de uma interpretação, de outras várias interpretações – são as diversas vontades que se fazem pensamento no meu corpo...
O apelo à vida de Nietzsche é muito mais admitir para si a sua interpretação, as suas perspectivas, tornando cada vez mais forte aquele que pensa acerca da sua própria vida – e isso é posto na vida. Quem pensa acerca a natureza, acerca da luta, da morte, do caos, atribui sentido e se afirma enquanto sujeito vivente. Sabedoria, portanto, é tornar-se o que é (o que se quer, pois esse “é” é devir), no caso de Nietzsche, seria se alimentar bem e saber estar nos locais que fazem bem para a sua saúde, ou seja, a busca por um conhecimento do próprio corpo, por isso ele se considerava inteligente [4].
O filósofo do futuro, que nada mais é do que um filósofo do corpo, do frio na espinha, do toque, do sentimento, das mais diversas afecções, do conflito com o outro – pois é isso que o torna mais forte -, do amor, da dor, do sofrimento, do engano de si, do falso – caso se opere ainda com a idéia clássica de oposições de valores - é um filósofo da vida, não coloca para si a pretensão de elaborar proposições acerca da realidade como se colocasse para além do mundo, mas proposições para si, constitui juízos que afirmam a sua vida e potência – no fundo uma proposição filosófica desse filósofo do futuro é o seu extravasamento.
Podemos até mesmo perceber que os vôos de Nietzsche no espaço científico não foram tão exitosos assim, pois, por exemplo, a contraposição da teoria darwiniana à sua vontade de poder, deveria ter se amparado mais firmemente em fundamentos científicos, isto é, a pretensão científica de Nietzsche deveria ter como fundamentação um experimento. A própria tese de uma Vontade de Poder, por mais que ele diga que constitui a vida, a natureza, ainda fica no âmbito da argumentação, da busca de um primeiro princípio, como vários filósofos fizeram – inclusive os que ele chamou de preconceituosos. Contudo, não é isso o que mais vale, devemos entender sua filosofia como uma tentativa de formar-se na vida, como ele mesmo afirma:
Quem conhece a seriedade com a qual minha filosofia principiou a batalha contra o sentimento da vingança e da revanche, até chegar à doutrina do “livre-arbítrio” - a batalha contra o cristianismo é apenas um caso isolado dentro dela -, haverá de entender por que trago à luz minha conduta pessoal, minha certeza instintiva na práxis (Idem, 2006, p.37).
Portanto, precisamos tomar a filosofia de Nietzsche como uma filosofia autobiográfica, e é nisso que está a sua honestidade e o seu diferencial. Entretanto: Faria algum sentido tomar a busca de alguém como sua, isto é, viver conforme o pensamento de outro? Não seria isso a própria fraqueza enquanto afirmação, na medida que afirma outro através de si mesmo? Devido a essas questões, creio que a filosofia de Nietzsche deve ser tomada como a escada de Wittgenstein [5], isto é, uma escada estendida entre duas montanhas sobre um abismo, uma mais alta que a outra, onde após subir essa escada até a montanha mais alta e jogá-la fora, o sujeito fica sem volta, e de lá, inteiramente só, contempla o mundo em um todo – incluindo ele mesmo -, onde não há instância de apelação, apenas a sua vida – é isso que se chama esclarecimento, e é por isso que é preciso ter coragem.
[1] Segundo Nietzsche, a Vontade de Poder é a força mais elementar da natureza, que está em todos os organismos que se nutrem, que possuem metabolismo (NIETZSCHE, 2005, p. 40). É por isso que devemos entender, em um primeiro momento, essa vontade como uma força que quer ser mais; para isso ela quer dominar, escravizar tudo que lhe opõe resistência, e é assim que ela se torna cada vez mais forte.
[2] KANT, 1974, p.100.
[3] No texto de onde foi extraído esse trecho, ao invés de “poder”, o tradutor utiliza “potência”. Entretanto, preferimos continuar utilizando “poder”, para não gerar confusão.
[4] ECCE HOMO, no capítulo “Por que sou tão inteligente”.
[5] “Minhas proposições elucidam dessa maneira: quem me entende acaba por reconhecê-las como contra-sensos, após ter escalado através delas – por elas – para além delas. (Deve, por assim dizer, jogar fora a escada após ter subido por ela). Deve sobrepujar essas proposições, e então verá o mundo corretamente” (WITTGENSTEIN, 2001, p.281)
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
KANT, Immanuel. Resposta à pergunta: o que é o esclarecimento?. Petrópolis: Editora Vozes, 1974.
MARTON, Scarlett. Nietzsche: Das forças cósmicas aos valores humanos. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2000.
NIETZSCHE, Friedrich. Além do Bem e do Mal: Prelúdio de uma filosofia do futuro. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
_______________________ Ecce Homo: De como a gente se torna o que a gente é. Tradução de Marcelo Backes. Porto Alegre: L & PM, 2006.
_______________________ Crepúsculo dos Ídolos (ou como filosofar com o martelo). Tradução de Marco Antonio Casa Nova. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000.
_______________________ Coleção os Pensadores: Obras Incompletas. Tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Abril Cultural, 1983.
WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus Logico-Philosophicus. Tradução de Luiz Henrique Lopes dos Santos. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2001.
Wikipedia – Enciclopédia Livre. Disponível em http://pt.wikipedia.org/wiki/Thomas_Malthus . Acesso em 13/12/2007.
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