Miniatura
Descrição
O film en douze tableaux é o queridinho dos filmes Pop que Godard fez na década de 60. Neste momento, ele produziu as obras mais vistas de sua filmografia, chamando atenção para si através de seus filmes-ensaios. O mais popular diretor da Nouvelle Vague constrói suas ficções repletas de juízos radicais, citações filosóficas y literárias, extremamente referentes, de modo a criar um universo objetivo y reflexivo, inédito até então, em lugar da cinematografia ingênua que o antecedera.
Viver a Vida conta história de Nana, uma jovem ambiciosa a procura de tornar-se atriz. Anna Karina se sai muito bem em seu papel com uma atuação a legitimar o discurso godardiano, que enseja o Brecht, embora Godard a julgue sempre atuando como atriz de cinema mudo (um grande elogio, vindo do mesmo). Ela será banhada constantemente por luz y sombra, a imprimir poesia, mas a constranger-nos com a possibilidade de nunca poder vislumbrá-la em sua essência.
O filme é carregado de cenas ontológicas, a começar com um de seus longos planos. Nana conversa com Paul, num café, de costas para a câmera, onde só podemos vê-la através do espelho do bar. Ela rompe o casamento, que há tempos desandava, pelo fato de ter traído seu esposo, apesar de em momento algum ela demonstre importar-se com seus sentimentos. É-nos construída, logo no primeiro tableau, uma Nana que só fala de si, responsabiliza o outro pelas suas próprias incapacidades y comporta-se constantemente como se atuasse. Ao que Paul replica: “Isto não é uma cena, você está me deixando porque eu sou pobre”. A cena se desenrola com frieza quando os dois jogam numa máquina de Pinball como se fossem indiferentes a situação. Mesmo porque, para ela, o verbo não acompanha o pensamento-sentimento que possa existir entre eles. Não há concordância. Inexiste. Ao que, de certo modo, dialeticamente, Godard se contradiz y se completa: “Um pássaro é um animal com exterior e interior. Tire o exterior e fica o interior. Tire o interior e você vê a alma”. Aliás, Godard em muitos de seus filmes soa como sinônimo de contradição.
Godard a transforma numa operária, como faz questão em tantas de sua obra, que não tem o menor interesse pelo que faz. A câmera também não tem interesse. É, aliás, sob a fotografia, ou melhor, sob a operação de câmera – como preferia ser considerado – de Raoul Coutard que a câmera vai adquirir o papel de personagem, sempre a expressar alguma emoção. Ora se posicionará frenética y perspicaz, ora incólume às vivências de Nana. Está ávida quando Nana vai ao cinema assistir La Passion de Jeanne D’Arc, d’Dreyer – um dos filmes-referência que o autor classificará mais tarde de filme componente da verdadeira história do cinema, em seu único livro escrito. Nesta cena, é forte o conformismo de Jeanne D’Arc negado porém vivido indiretamente pela nossa protagonista: “Dieu sait où il nous mène, nous ne comprenons la route qu’au terme de notre chemin”
Mais uma cena impressionante: Nana é interrogada na delegacia, por assaltar uma senhora. Marca pela musicalidade no momento em que soletra seu nome. Com seu rosto sombreado, a atuação de Anna explode com muita delicadeza, nos apiedando y pela primeira vez compreendendo seu personagem: não é um ato típico de Nana, mas é o lugar para onde seu contexto a impele: “Eu... é outra pessoa”. Y faz-se outra pessoa quando vai para as ruas se prostituir pela primeira vez.
Nana fica extremamente desesperada quando seu cliente tenta beijá-la, mas ao encontrar-se com Yvette, antiga amiga, há d’se contradizer. y nos oferecerá de bandeja num de seus encantadores flertes com a câmera toda a sua angústia. Suas palavras são consistentes embora suas idéias não afinem realmente – motivo pelo qual o próprio Godard é reconhecido.
No sétimo tableau nos deparamos, y enfim nos encantamos, com a linda cena em que ao escrever uma carta, oferecendo-se como prostituta, Nana mede, por palmos, sua altura. E encontra-se com Raoul, de agora em diante, seu cafetão – há dor, há humilhação, há umidade em seus olhos.
Ela já veste-se como uma prostituta, usa maquiagem carregada. Vai a um fino salão onde os homens tentam alegrá-la, supondo-a triste. Até por ficha na jukebox então dançar pelo salão. A cena de dança mais sedutora y esmagadora do cinema: através de caras y bocas, insinuações, requebrados, Nana se oferece aos homens presentes. A câmera ora a olha, ora nos expõe seu olhar – inclusive a visão de ojeriza de um dos presentes. Todos na sala estão constrangidos, só Nana, que vive sua vida. Aliás, Vivre sa vie é expressão francesa que significa prostituir-se.
No ato 11, Godard vai legitimar todo o ensaio que até agora apenas pontuara. Nana conversa com um senhor, Bruce Parain, filósofo da linguagem. Neste momento, ela se oferece para um drink, mas vê-se perplexa sem saber o que dizer – pano pr’a manga para Godard: “Porque alguém tem sempre que falar? Muitas vezes não deveria falar e sim ficar em silêncio. Por mais que alguém fale, menos as palavras significam”. Apesar de usar a frase como expressão da ingenuidade de Nana, o próprio Godard compartilha deste pensamento, uma vez que afirma falar muito quando não sabe bem o que está dizendo. Nana sente-se traída pelas palavras, mas Bruce dirá sobre nossa traição para com as palavras – quando não nos fazemos entender através delas. Y que é através das palavras que é possível vencer a dialética a encontrar um equilíbrio em viver. Mesmo por que aqui Bruce, y Godard, irão teorizar que só podemos sentir-pensar através das palavras. A reflexão somente se daria desta maneira. Anna não muito se demora em flertar-nos novamente como se dissesse: vocês estão ouvindo? O formato desta cena é do gênero de entrevista, o que nos torna atônitos por certo tempo. Até pelo menos, Bruce dizer que só se alcança a verdade através do erro, y Nana nos sorri, com esperança. Godard erra, nesta cena, ao tentar teorizar sobre o amor. Uma grande gafe porque quanto mais ele tenta dizer, menos ele parece saber ao que se refere, através de discursos extremamente incongruentes. Ao que, por fim, levanta bandeira branca: Tudo o que sabemos são pequenos pedaços e fazemos escolhas aleatórias.
No último tableau, Nana envolve-se com um de seus clientes. Momento em que planeja abandonar a profissão. Ele lê Edgar Poe para Nana. Nana quer o livro. Ele a chama para ir ao museu y ela se nega. Conspícua referência ao cinema mudo. Os amantes abraçam-se sem utilizar de palavras ditas, mas há legendas. Aliás, nunca visto: filme com a narrativa construída através da figura de uma prostituta, alheio a cenas de sexo ou beijo. Seriam ciúmes do Auteur? Nana vai falar com Raoul. Ainda há tempo de filmar pontos turísticos da França y homenagear Jules et Jim de Truffaut. Através dos cortes secos y som direto, remasterizado, podemos presenciar a uma das mais magníficas obras do cinema mundial, dedié aux films de série B.
Durante todo o filme, Godard parece constantemente homenagear Anna Karina, que mesmo se enfureceu com ele, dizendo-lhe que a havia enfeado. O que não era verdade. Não era verdade que ela não esteve linda até nos momentos mais drásticos, enquanto chorava, ou que a partir daí não se tornou um dos rostos mais amados da Nouvelle Vague. Definitivamente não, mas foi a partir daí que começou a ruptura artística y pessoal deste casal. “Portanto, ter relações com a atriz de quem eu era ao mesmo tempo cliente e ela a prostituta...” disse Godard uma vez discursando sobre Vivre Sa Vie y as razões do rompimento com Anna K.
Viver a Vida é uma bela y séria obra. Refere-se às relações de gênero na Europa a que era contemporânea; da marginalidade nas grandes metrópoles y da crise do humanismo da sociedade como um todo– utiliza-se de seus personagens em suas micro-vivências para discursar sobre temas maiores que eles próprios. Godard defende seus pontos de vista com precisão, encantando desde sua geração chegando a nós ainda de maneira grave. Permanece presente a universalidade que rende a este filme o caráter de arte.Sistema de Origem
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