Descrição
1. “...‘Bugreiros’ é o nome pelo qual ficaram conhecidos os indivíduos especializados em atacar e exterminar indígenas brasileiros e que eram contratados pelos colonos imigrantes e pelo governo provincial de Santa Catarina. O termo se origina da palavra ‘bugre’, como eram conhecidos pejorativamente os indígenas da região. Os bugreiros realizavam ataques de surpresa, arrasando aldeias com poucas chances de resistência aos indígenas. As tropas de bugreiros compunham-se por oito a quinze homens caboclos, conhecedores profundos da vida do sertão e geralmente aparentados entre si, que atuavam sob a ação de um líder com pleno poder de decisão. Os grupos também prestavam serviços de proteção a viajantes, tropeiros e agrimensores, quando necessitavam atravessar ou permanecer em territórios onde a presença indígena era frequente.” (Trecho do relatório de Eduardo Hoernhan apresentado ao Serviço de Proteção aos Índios)
2. “Infinitas precauções tomam, pois é preciso surpreender os índios nos seus ranchos quando entregues ao sono. Não levam cães. Seguem a picado dos índios, descobrem os ranchos e, sem conversarem, sem fumarem, aguardam a hora propícia. É quando o dia está para nascer que dão o assalto. O primeiro cuidado é cortar as cordas dos arcos. Depois praticam o morticínio. Compreende-se que os índios acordados a tiros e a facão nem procuram defender-se, e toda heroicidade dos assaltantes consiste em cortar carne inerme de homens acobardados pela surpresa. Depois das batidas dividem-se os despojos, que são vendidos a quem der mais, entre eles os troféus de combate e as crianças apresadas”. (Trecho do livro ‘Índios e brancos no sul do Brasil – a dramática experiência dos Xokleng’, de Sílvio Coelho dos Santos)
Ao chegar à recém colonizada Vila Xapecó, o jovem missionário de sobrenome alemão, calado e frio de sentimentos – talvez por sua desesperança no tal “amor” (tão alardeado nos poemas dos livros que lia, porém ferino e cruel em seu contato prático até então, em seu breve entendimento como homem adulto e capaz de amar) – sentiu-se admiravelmente atraído por uma presença feminina que destoava completamente das demais mulheres (filhas de italianos e alemães que para ali vieram), tampouco se assemelhava com as caboclas que ali habitavam, antes mesmo da Companhia colonizadora chegar.
Soube, com o passar dos dias, que a jovem de rosto singular e beleza exótica era uma talentosa cantora, que animava bailes e serestas ali onde habitava, causando muitas vezes estranhamento e até mesmo medo aos recém chegados filhos e netos de europeus, por usar sua voz potente para entoar canções consideradas estranhas, talvez pagãs.
Corria, pois, a fama de seu dom. E o jovem missionário interessou-se cada vez mais por aferir tal aptidão. Afinal, não só de poemas se resumia a sua erudição. Mesmo filho de sapateiro, aprendeu desde bem novo a apreciar as artes. Saber que aquela bela jovem de olhos puxados e aparência selvagem, dominava a técnica do canto, tornava-a – para ele – ainda mais esplêndida e atraente!
Com o passar do tempo, a aproximação dos dois fora inevitável. Para surpresa do missionário, a bela que habitava seus pensamentos, falava-lhe desinibida! Aquela que outrora lhe parecia inalcançável, agora lhe contava sobre seus entendimentos da vida, sobre suas concepções do mundo e, por muitas vezes, confidenciava-lhe segredos.
- Surreal! – costumava afirmar ele. E era mesmo surpreendente como o mundo e a vida puderam, de forma tão imediata e inacreditável, impor-lhe uma virada assim inesperada, semelhante às reviravoltas que costumava ler nos romances ingleses!
Ocorre que o jovem missionário também pudera constatar em sua musa, uma ânsia enorme por atenção e cuidados. Não sabia ele concluir o porquê de tamanha carência aparente, mas entendeu, desde as primeiras palavras trocadas, que ela necessitava de atenção. Talvez por isto ele sentisse já estar dominado pelo sentimento da ternura, que lhe provocava um agradável aperto no peito, todas as vezes que falava ou pensava nela.
E aquela repentina intimidade criada entre os dois jovens, permitiu a ele a liberdade de lhe contar sobre o seu desejo de vê-la cantando.
- Louvarei a lua, depois de amanhã. – disse-lhe ela.
Era segunda-feira. Ele prometeu estar presente na noite de quarta. E assim o fez mesmo exaurido após um dia de árduo trabalho. Apesar de chegar sozinho a um ambiente até então curioso e, por um breve instante, aparentemente inóspito, acomodou-se em meio às pessoas estranhas que ali estavam beberrões e exalando perversão, para (finalmente) poder vê-la cantando.
E como ela cantava bem! Como ela punha emoção e verdade naquilo que entoava! Ele, até então acostumado com os cânticos mecânicos e sem verdade dos corais da igreja, sentiu seus pêlos arrepiarem-se a cada tom mais elevado alcançado por ela. Já estava encantado. Sentia-se entregue ao fascínio e dominado pela insegurança de, provavelmente, não ter despertado nela o mesmo deslumbre. Hipótese esta que caiu por terra assim que ela parou seu canto e veio até ele. Sob o céu estrelado daquela noite fria típica das áreas altas da região Oeste de Santa Catarina, ela olhou nos olhos dele e lhe pediu desculpas. Antes que ele pudesse tentar deduzir o motivo de tal requerimento de absolvição, ela beijou-lhe a boca. E o céu desceu! Sim, só podia ter ocorrido isto para explicar tamanha sensação provocada pelo encontro com aqueles lábios carnudos, daquela boca que até a poucos minutos hipnotizava a todos os expectadores com mavioso cântico, e que agora lhe revelava a maciez que só as nuvens, transfiguradas em branco algodão, podiam possuir!
E aquela noite passou. E os dias passaram! E os dois só se queriam perto. E ela revelou-se uma insuperável amante. Doce e meiga, sim, mas também uma voraz libertina! Além de se revelar ela também compartilhou de sua trajetória de aflição, humilhação e subjugo.
-Sou bugra! – contou-lhe ela.
E também lhe contou do quanto sofreu desde que fora tirada de sua aldeia. Poupada do extermínio, obrigou-se a uma vida ao lado do algoz de sua gente: o bugreiro, que lhe poupara de ser morta ou vendida. Mas tal ato de piedade custou a ela um amargo preço. Passou a ser dele um mero objeto de luxúria. Sem ganhar afeto, sem receber carinhos, sabia que o bugreiro desejava e possuía outras mulheres e só ouvia dele afirmações de amor, quando este a queria na cama.
E o jovem missionário, compadecido com tão obscura existência e após ouvir da bela bugra declarações de paixão, passou a desejar uma guinada extrema em sua vida. Assumiria seu romance escandaloso, resistiria às manifestações de preconceito e às condenações sociais, lutaria por aquela mulher tão fragilizada e necessitada de atenção e afeto.
Era outro! “Resplandecente”, como lhe afirmavam alguns amigos mais próximos. Encaminhava-se, inclusive, para uma nova concepção sobre o amor. Sentia-se feliz como há tempos não ocorria. Seus olhos apresentavam um brilho mais intenso que o brilho metálico dos adornos tribais descobertos por ele no corpo de sua índia.
O mundo, porém, mantém incansável o seu movimento de rotação. E, assim como os dias chegaram quentes apesar do inverno recém-iniciado, a bugra, dona dos apreços do jovem descendente germânico, procurou-lhe para encerrar o que nem havia começado. Confessou-lhe dependência em seu carrasco. Preferiu o bugreiro. E assim como o bugreiro fez com os corpos de seus pais, irmãos e tios, a bugra dilacerou o coração do jovem missionário, naquele instante.
Ambos choraram. Apenas ele sofreu. E sofreu duplamente, por não suportar tamanha desilusão e por não conseguir compreender tal conexão de uma vítima com seu verdugo! Como podia aquela que dizia ser humilhada e subjugada, desejar o seu executor? Vivesse ainda nos dias de hoje, e o jovem missionário talvez pudesse se contentar com a tese da “síndrome de Estocolmo”, apresentada pela psicologia moderna. O que fez, porém, naqueles tempos, foi entregar-se à dor, abandonar a vila e, definitivamente, não mais acreditar no amor.
Ninguém mais soube dele. Alguns relatos registram que se tornou bugreiro, pois tamanha experiência havia lhe feito entender que a alma feminina é masoquista. Outros afirmam que ele seguiu pelo mundo como compositor, apresentando-se em tabernas e cantando as dores de um coração partido.
Quanto à bugra, não me perguntem... Não merece ser lembrada.
(Texto de Jone Schuster)
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