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Descrição
ENGANO SEU!
Jean Santos
Enfiei o dedo embaixo da torneira, mas o sangue não parava de escorrer. Era engraçado como aquele sangue logo ia descendo ralo adentro. Principalmente porque sentia que aquela água ensangüentada queria me arrastar. Olho para o chão, agora calmo, e vejo a pequena asa da xícara quebrada, a mão esquerda cobrindo a mão direita, escondendo o sangue. Conrado, eu digo e estou calado olhando para um mundo estranho nessa cozinha úmida e envelhecida. Conrado, eu repito e sinto um pequeno beliscão dentro da minha barriga, mas não tenho vontade que ele ouça. Queria poder dizer-lhe alguma coisa, mas dizer o quê? Olho os pedaços de vidro espalhados pelo chão da cozinha até a sala e agora sei, preciso limpar todos esses cacos. Preciso limpar tudo isso e seguir o meu caminho porque sou um homem limpo. E um homem limpo faz isso! Cheguei a rir. Sempre achei muito feia essa xícara.
Era ardente o friozinho noturno que entrava pela janela da sala. Conrado gosta de ovo mole e eu gosto de fazer-lhe da forma e do jeitinho que lhe agrada. É muito prazeroso vê-lo chegar faminto e saciar sua fome. Saciar sua fome é o que me mantém vivo. Espero que esta noite ele não demore. Enquanto isso, faço café forte e os pãezinhos com bastante manteiga, arrumo os pratos na mesa para finalmente fritar os ovos, dois e depois mais dois. Antes de esquentar a frigideira, fiquei um tempo vendo o fogo, chama azul, amarela quando jogo sal. Sal no fogo é bonito de se ver. Como é feliz quando o ovo cai e logo começa a dançar seu tango no óleo a cuspir. Num silêncio viscoso, foi crescendo o chiado da água levantando fervura na chaleira. Em três minutos ele chegará! Apertei a minha cabeça que latejava sob as pancadas do sangue. Assustei-me. O telefone estava tocando. A campainha ficou tocando, tocando sufocada, abafada como se estivesse debaixo d’água, lá no fundo mesmo.
― Alô!
Ninguém respondia. Apertei o fone contra o ouvido. ― Alô. Responda! ― Como eu precisava ouvir alguma voz. Se ao menos fosse um engano!
― Alô!
― Augusto? Aqui é Regina! Quero falar com meu filho Conrado, chame logo ele!
Afastei um pouco o fone do ouvido. Tia Regina falava alto e a voz era metálica.
― É... tia, é que Conrado não está! Saiu...
No cheiro da memória, um vago odor de mutamba, ela sempre ensebava os cabelos.
― Não tá? Saiu? E isso é hora de Conrado sair? Para onde é que ele foi uma hora dessas? Augusto! Você é mesmo um irresponsável, um completo merda! Não sei onde eu estava com a cabeça quando permiti que Conrado fosse morar num lugar desses, perigoso! E ainda por cima com um desavergonhado feito você!
Nem alta nem baixa. Nem gorda nem magra, um torçal grosso de cabelos escuros dando uma volta no alto da cabeça com a arrogância de uma coroa. Impressionantes eram aqueles olhos negros. A voz pesada, forte. Essa era tia Regina. Não fossem os ovos queimando, seria agora a hora de lhe contar umas verdades!
Fiquei pensando quando tia Regina desatou a falar, lembrei da surra que havia levado dela quando eu era ainda um moleque.
― E ele tá comendo direitinho? Não está passando fome, tá?
― Não tia, agora mesmo estou fazendo a comida da gente.
― Quero só saber de você sem cuidar de Conrado, ouviu bem?! ― protestou Regina.
Sua voz foi ficando distante. Próximo estava eu mesmo com um calção velho escondendo entre as pernas um rasgão enorme. Conrado havia jogado esse calção no lixo e eu recolhi. Passei o fone para o outro ouvido, mudei de posição no chão e consegui interrompê-la.
― Que é isso, tia? Estou cuidado muito bem dele. Ele é o irmão que eu nunca tive.
― Volto a ligar em dez minutos! Preciso falar com ele e saber se ele está mesmo bem.
― Tudo bem, tia! Ligue! Mas agora eu tenho que desligar. Tchau!
Desliguei. A tia era apressada e eu sou lento, pensei enquanto entrava na cozinha esfumaçada. Um fartum opaco de panela velha queimada reinava no ar. Cheiro forte mesmo. Peguei a frigideira pelo cabo e joguei imediatamente na pia abrindo a torneira! Muita água, vapor. O cheiro era mesmo muito estranho! Em meio a toda aquela aura nebulosa, só consegui enxergar a chama azul da boca do fogão sorrindo de mim. Encarei-a. Senti meus olhos agora mais claros sob uma certa névoa esbranquiçada, mas poderia ser apenas um efeito de luz.
Levantei a cabeça e surpreendi-me alegre, realmente alegre com o que acabara de ouvir. Alguém estava batendo na porta. O meu Conrado deveria ter perdido as chaves. Tinha que ser ele! Bateu novamente. Eu conheço as batidas de Conrado, mas não reconheci aquelas. Certamente não era ele, mas quem seria? ― me perguntei enquanto rapidamente já destrancava a porta.
― Oi, Augusto!
Era Sônia, a maldita Sônia que já me atormentara tanto. Fiquei um instante parado. Nunca a tinha visto com essa beleza de moça. Os olhos brilhantes quase negros chegavam a me assustar. Como estavam grandes os seus cílios! Abriu os braços tão afetuosamente que cheguei a recuar. Disfarcei meu estranhamento.
― Continua a mesma.
Ela foi entrando com aquele seu caminhar que mais parecia o balanço de uma canoa. Demorei olhando aquela bunda redonda e empinada. Sentia-se observada e se exibia até nos mínimos movimentos. Parecia um lagarto. Não consegui parar de acompanhá-la com meu olhar libidinoso. Eu fingia que não a olhava. Abaixava a cabeça, mas assim que ela se distraia, olhava-a depressa. Ela fechava as cortinas.
― Acho que agora podemos falar francamente. Ou não? Você sabe, Augusto. O nosso romance foi de pura conveniência, eu me apaixonei perdidamente por você. Perdidamente. E você queria apenas fazer um bom negócio e fez. Você sabe bem. Você precisava de dinheiro e eu de amor.
Agora era ela quem me olhava com uma expressão voraz. Parecia ter envelhecido de repente. Aproximei-me para ouvi-la e de seu perfume me veio um outro cheiro obscuro. Lembro-me bem, fui eu que havia escolhido aquele cheiro. Aquele perfume! Lembro-me da primeira vez que senti aquela fragrância, como a gente se desejava! O namoro acabou e o perfume continuava ali, vivo. Recuei. Levou a mão trêmula até os lisos cabelos negros cortados na altura das orelhas e com um ligeiro movimento faceiro tirou-os de cima de seus olhos. Seus olhos que tinham aquele brilho de aço me pareciam agora os olhos de uma cega. Tocou com as pontas dos dedos em meu rosto e começou a falar.
― Te dei o dinheiro que você precisava. Mas a gente não tem mesmo que pagar pelas emoções? Que, na verdade, não duraram muito. Mas me custaram muito. Paguei caro, muito caro. E agora? Te dei todo o dinheiro que eu pude, mas você não me deu o amor que eu quis ter. E agora?
Cruzei os braços e fiquei calado. Eu realmente não sabia o que responder. Ela fez um movimento desafiante com os ombros. Agora podia vê-la de perfil, o queixo pontiagudo e agressivo, a boca contraída. O olhar fixo, concentrado num alvo, atenta como um arqueiro. Ela sabe mesmo o que quer, eu pensei e me fiz a pergunta ― e eu, o que é que eu quero? Ela logo se virou para a parede. A parede completamente branca, nenhum quadro, nenhum prego, nada. Inclinei-me sobre seu corpo em direção a seu pescoço, minhas mãos já estavam em sua cintura e ela logo se esquivou.
― E se eu fosse um homem?
O tom era de uma petulância sem maior interesse em ouvir a resposta. Cheguei mais perto dela, acho que me apoiei na mesinha do telefone para não cair. Se você fosse um homem seria um lindo moreno, querida. ― devo ter dito quando já estava no corredor e agora não sei se disse isso ou se pensei enquanto segui firme em direção ao meu quarto. Quando já chegava ao meu quarto, Sônia veio correndo e me alcançou. Veio por trás e me abraçou fortemente, seus seios, colados em minhas costas, me apertavam. Era assim que ela fazia quando queria me seduzir. Nem tentou me beijar. As mãos ao redor da minha cintura me tiravam o fôlego. Devo ter respirado fundo enquanto a afastava. Livrei-me das suas mãos e ficamos frente a frente. Ficamos nos olhando por alguns momentos, seus braços caídos ao longo do corpo, seus seios eriçados, sua boca franzindo, seus olhos fechando. Senti uma ansiedade pulsando sob a minha pele.
― Sônia!
Estranhei a minha própria voz, murmurada. Lembrei-me de repente da garrafa de uísque. Eram os meus dedos que agora tremiam.
Sônia lançou-me um olhar dolorido. As olheiras davam à sua beleza um toque triste.
*
― Inacreditável.
― O que, Sônia?
― Tudo isso.
Ela dizia e fazia um gesto estranho. Inclinou-se depressa para pegar o copo de uísque que tinha deixado no chão. Com a outra mão cobriu o seio que se descobriu ao estender o braço. Nu e já de pés, acendo um cigarro enquanto observo seu colo seminu. Traguei de olhos fechados.
― Algum problema, Sônia? Você está meio tensa.
― Eu, tensa? Impressão sua. Pura impressão. Só estou me sentindo um pouco suja.
― Por que não toma um banho?
― Não é preciso, Augusto. Tomo mais este gole e já estarei limpa!
Falou arrogantemente. Virou o copo até que os cubos de gelo se acomodassem no fundo. Escondeu na língua uma pequena pedra de gelo e triturou-a nos dentes. Soprei a fumaça em sua direção.
― Não era você que devia estar na cama comigo. Era Conrado, compreende? Compreende?
― Engano seu! Conrado não existe! Não existe!
*
Afastei-me da cama e fiquei um instante imóvel em meio ao quarto inflamado. Comprimi os olhos com as palmas das mãos. O quarto foi-se apagando dentro da minha cabeça. Voltei-me então para o espelho. Alguma coisa tinha se desfeito dentro da minha cabeça. Há pouco, sentia-me bem. Olhei para meu pau recolhido, murcho, pequeno, os pêlos já escassos. Tive um olhar complacente sobre a minha própria nudez.
― Quero viver no claro, já não suporto essa apatia de bêbado crônico que nem sabe se amanheceu. Mas dentro de mim só o vazio. O oco. O egoísmo que sinto me deixa a margem de tudo que acontece, olhando para o meu próprio umbigo... Antes eu me considerava perdido porque assim me conformava, me resolvia, mas agora eu estava perdido além da minha vontade e essa era minha perda definitiva.
― O telefone está tocando, Augusto! Não vai atender?
― Não!
Sistema de Origem
Iteia
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