Miniatura
Descrição
Pedro Bernardo de Sousa
Bom dia. Meu nome é Moisés Korch dos Santos. Vou contar, porque há quem ache interessante, e porque eu tenho tempo. Mas antes, conceda-me um capricho, por gentileza. Responda-me, diante de uma garota caucasiana, jovem, de pele macia e bonita, o senhor diz que ela é de porcelana ou de cera? Essas metáforas são bastante usuais, não? Há também outras comparações, muito originais ou muito medíocres. Mas, de todas, me fio à cera. Porcelana não é humano. É algum tipo de terra, moldada e cozida. Parafina é derivada de petróleo, é um composto orgânico, de carbono, como nós. Como nossa carne. Como a carne viçosa de alguém vivo há pouco tempo, ou como a lama negra de alguém morto há muito tempo. Tanto tempo que não se respeita nem mesmo as separações entre esses seres de outra época. Nem a própria Terra as respeita. Quanto menos nós, pessoas despreocupadas, homens sem superstições, que dissecam cadáveres para nos compreender melhor. Nós destinamos esses vivos de outrora para uma última função: queimar. Nos nossos carros, caminhões, aviões, velas. A vela é a mais interessante, porque é somente ela, por si só, que queima. O pavio só guia o fogo.
Bem;
Linda lutava tae-kwon-do. Eu gostava de vê-la treinar. Ela fazia tranças para treinar. A ponta dos cabelos, dourados, cortava o ar, quando ela voava um golpe bonito, elegante, bem oriental. Eu achava bem fatal, o golpe. Alguns me pareciam fáceis, até eu tentar. Outros eu nem tentava. Fazíamos um ano de namoro quando, passeando num shopping com ela, tive a idéia de comprar-lhe uma espada. Aquela espada, que ela olhava. Trata-se de uma bela arma coreana, em aço brilhante, com a bainha adornada com figuras mitológicas orientais em cobre. Linda observava a peça com cuidado, através da vitrine. Dava gosto namorar-lhe a paixão por coisa tão tola. Sei que aquilo já foi importante, que guerras foram travadas com armas como aquela, que ferozes guerreiros já empunharam espadas curvas como aquela. Mas agora, depois de tanta pólvora, não passa de uma faca comprida. Coisa tola. O que me interessava era aquele rosto apaixonado. Não era muito bonito, devo admitir. Mas nós não amamos necessariamente o que há de mais bonito à nossa volta.
Seu corpo era duro e forte, calejado pelos treinamentos. Sua vaidade era nos punhos. Nesse dia, ela trajava um moletom que parecia de plástico, com um traço amarelo ridículo de cada lado, e uma camisa branca, com a estampa deselegante da academia. Cabelos lindos, loiros, presos. O rosto, como eu disse, era rude como o resto, e os olhos, naquele dia, brilhavam enquanto corriam aquela espada.
Foram somente alguns dias até que eu afogasse meu cartão de crédito com o mais caro presente que já ofereci a alguém. E eu caminhava apreensivo, com a espada sob o sobretudo. Se a polícia me abordasse justo naquele dia, eu teria, talvez, dificuldades para me explicar. Talvez ficasse nervoso. Não conheço bem as leis que tratam disso. Armas brancas, armas prateadas... Não sei. Aquela parecia perigosa. E era, certamente. A lojista recomendara cuidado. E eu continuava tenso, acompanhado por esses pensamentos que não me ajudavam muito. Mas era simples. Eu só precisava alcançar a casa de Linda, que ficava a uma quadra de onde estacionei o carro. Depois de algumas dezenas de metros, eu estava lá, são e salvo.
– Nenhum sinal da polícia, pensei, como se tivesse comprado uma ogiva nuclear e a estivesse levando a um terrorista.
Linda não me esperava naquele dia. Quarta-feira de inverno úmido. O céu triste, por suas próprias razões, que ignoro, ameaçava despencar em chuva. Entrei com cuidado, sem fazer barulho que se quer meus ouvidos atentos notassem. Os dela, na sala, estavam bem distraídos. Entrei. Havia silêncio e um guarda-chuva vermelho, que eu não reconheci. Havia alguém na casa, com ela. Senti meu sangue anular o frio, queimando-me as veias. Pensei em como agiria. De forma civilizada, criminosa, desesperada? Estava com raiva. Mas tinha uma ponta de esperança. Poderia ser uma amiga. Aquela ruiva, da faculdade. Laura. Elas estavam se vendo bastante ultimamente. Uma onda de confiança infantil me correu o espírito. Continuei devagar, um pouco mais tranqüilo.
Chegando à sala mal iluminada, contemplei, sem alarde, o fogo de duas criaturas nuas se beijando ternamente, de olhos fechados e cabelos unidos mas distintos, todos longos, os de Linda, amarelos, os demais, vermelhos. Era simplesmente fogo. Roupas no chão, entre as quais reconheci o roupão de Linda. Elas se beijavam com tamanha paixão, que meu ciúme foi contaminado por um erotismo inexplicável. Recuei para a sombra. Eu queria ver mais. As mãos correndo as costas, apertando o pescoço, as nádegas, os braços se trançando, se confundindo, a pele macia que parecia de uma mesma criatura, eram cera pura, derretendo, com a chama de cabelos ardentes e brilhantes no topo. Uma vela de traição. Uma vela deslumbrante que me encantava, me estimulava, me roubava a dignidade, a felicidade, a sanidade. O torpor durou os minutos daquele beijo, que eu invejava, pois, devido a minha natureza sexual, eu jamais teria. E só agora compreendia isso. O beijo acabou sem fôlego, e deu espaço ao mais ardente olhar. Linda deitou com segurança sua hóspede no sofá, aonde a luz do abajur não chegava, e se debruçou sobre ela. Esse movimento majestoso, de quem condena o namoro quente à cópula crua, apagou o brilho dos cabelos. As duas na sombra, a vela apagada. Naquele momento, meu ciúme retomou sua sobriedade, e eu acendi todas as lâmpadas do cômodo, de uma vez, e me apresentei, frio e destruído, diante delas.
Linda se levantou, nua, cobrindo os seios com ambos os braços e, simplesmente, não cobrindo o resto. Uma vergonha deprimente. Laura se cobria como podia, com duas pequenas almofadas. Não podia. Não podia se cobrir, como não poderia ter feito aquilo. Ela me conhecia. O namorado fiel de sua amiga. Como fora capaz? Como foram capazes? Duas pessoas desumanas e coloridas, ali, diante de mim, despidas de tudo que há de certo no mundo. Pensei em empurrar Linda com toda força que pudesse e, em seguida, esganar com minhas próprias mãos aquela criança ladra inconseqüente. Tinha a impressão de que arrancaria sua cabeça. Mas sei que minha força não era um décimo do meu ódio. Sabia também que Linda não se deixaria empurrar. Ela simplesmente me imobilizaria, facilmente, e pediria para sua fiel amante chamar a polícia. Pensar na polícia me fez lembrar a poderosa arma que eu trazia comigo, sob a roupa. Imaginei um completo banho de sangue à minha frente. Vi-me um completo samurai vingativo. Não me mexi. Nem um músculo. Não disse palavra alguma. Também não ouvi palavra nenhuma. Linda não ousaria se defender. Permaneci ali, pelos segundos que me tomaram esses pensamentos, atônito.
Um raio lá fora anunciou chuva. Acordei do torpor. Retirei-me em silêncio.
Na rua, andei sob o céu violento, mas ainda somente ameaçando, sem chuva. Tentativa vã de espairecer. Pensei que depois de alguns minutos andando, eu não teria mais nenhum pensamento vingativo. Ou, pelo menos, que poderia controlá-los. Pensei na cena, erótica, exótica, latejante. Depois, pensei no tempo. Um ano de namoro chamado sério. Na verdade, não pensei no tempo, propriamente dito; pensei no número, no dado, no "um ano", no "doze meses". O tempo, em si, é outra coisa, muito maior, muito mais decepcionante. É o tempo que responde pelos momentos de felicidade que eu passara com ela. O calendário não se importa com nada. Tampouco o relógio. São convenções feitas para medirmos nossas façanhas em tempos de fartura, e nossas desgraças em tempos como estes. Convenções.
O tempo é o que eu amaldiçoava. O tempo de fidelidade que dediquei para terminar contemplando aquelas cores, as mais vivas. Quando eu me perguntei há quanto tempo minha fidelidade era paga assim, começou a chover. Bastante água. Água gelada. Eu poderia me abrigar sob o batente de uma porta qualquer, entre muitas daquela vizinhança, mas continuei andando. Deixei que a água me encharcasse. Achei que aquela água combinava com meu estado de espírito. De repente, a tristeza. Linda era a mulher que eu mais amara, nesses quase trinta anos de vida, que eu, convicto, amaldiçoei naquela noite. Amei demais.
Amei tanto que tinha a impressão de que tudo que viera antes dela, que outrora eu chamei amor, merecia outro nome. Impressões sobre o passado estão sempre sujeitas a distorções. Mesmo sob tamanha tristeza, não tive certeza daquela reflexão sobre amores passados. Mas e quanto ao presente? Não havia sombra de outra pessoa na minha vida! Eu estava traído, é verdade, mas naquele momento, sob memórias traiçoeiras do ano que atravessamos, me senti abandonado. Traição inspira revolta. Abandono, por sua vez, espreme dor e lágrimas. Chorei. Solucei. Tossi. Chorei.
Mas isso foi passando, e a revolta foi assumindo seu lugar de controle. Fiquei sem alma. Fui deixado para traz por ela, vazio e seco. Fui abandonado pela minha alma, que não queria mais morar em tamanho fracasso. Ensopado, mas seco.
Lembrei-me do dia em que a conheci. No hospital, eu avaliei as radiografias do seu tornozelo antes mesmo de conhecê-la. Quando a conheci, me apresentei galanteando. Gostei dela. Da simpatia, das histórias da academia de luta, da história do golpe errado que a levara ao gesso, tudo me encantou de repente. Não demorou para estarmos bebendo todas com seus amigos da faculdade. Ela estudava Educação Física. Morava sozinha. É preciso criatividade para desconfiar. Eu não sou muito criativo. Lido com a realidade. Sou médico. Um médico medíocre. Tive o talento imprudente de dedicar tudo de mim à mesma garota, em apenas um ano. Falávamos de casamento, de viagens, de filhos.
Conheci vários homens de quem tive ciúmes ao longo daquele ano. Agora entendo porque ela era tão eficiente em me dissuadir dos meus ciúmes; era a mais pura verdade. Nenhum deles fazia o seu tipo, de fato. Nada é mais convincente do que a verdade. Pois eu menti. Poucas semanas antes daquela noite, eu tinha conhecido Laura, na casa de Linda. Uma moça linda, mas que não fazia o meu tipo. Ora. Laura faria o tipo de qualquer homem heterossexual no mundo. Menti para tranqüilizar os ciúmes de Linda, como tantas vezes ela fizera comigo. Agora sei que o ciúme era de Laura. Ou de nós dois, a um só tempo. Pode ser. Linda poderia muito bem estar em dúvida. Claro. Mas isso não ameniza a dor.
As conversas hipotéticas, dessas que jamais pensamos que poderiam sair do plano das hipóteses, sobre a natureza humana, o nosso lado animal, eu abdico de todas.
– Todo homem é, naturalmente, polígamo. E toda mulher é, no fundo, bissexual, dizia eu, sob sorrisos furtivos de alguns e vitupérios bem humorados de outros. – Nós nos aculturamos, nos civilizamos e nos controlamos para viver melhor. Não somos animais. Não mais.
Agora, diante da minha monogamia patética e cega, e daquele bissexualismo traiçoeiro, eu renuncio a tudo. Eram pensamentos meus, que eu cultivava nas rodas mais chegadas. Pensamentos que se voltaram contra mim no momento em que cansaram da vida mesquinha no mundo de Platão e resolveram sair, passear na minha realidade, destruí-la, arruiná-la.
Dei a volta em dois quarteirões. O frio já se fazia notar, a despeito de tudo que me ocupava a mente. De volta à rua da casa de Linda, vi caminhar o guarda-chuva vermelho. Apressei o passo na sua direção. Vi-me diante dela, com tamanho ódio em meu rosto, que ela não pôde deixar de saber que eu não ia digerindo muito bem sua infração. O medo em seus olhos brilhava. A tempestade se enfureceu. O vento arrancou-lhe das mãos assustadas o guarda-chuva, como que sob meu comando. Ela não desviou o olhar do meu rosto. Seus cabelos ruivos, longos, soltos, começaram a se molhar, assim como suas roupas. O vermelho escureceu, perdeu aquela cor acesa, de fogo. Apagou. Sua face, entretanto, permanecia linda, meiga, cheia de sardas, como um anjo que enferruja de pecado.
Retirei o presente de Linda do sobretudo. Desembainhei com raiva a espada, que reluziu com a lâmpada amarela da rua. Joguei a bainha de lado, fitando os seus olhos, de um preto fundo, avermelhado por sugestão, cujas lágrimas, se havia, não se via, já que a água da chuva lhe corria o rosto todo, pingando constante do queixo.
Não sei nada de artes marciais. Na verdade, nunca me interessei. Linda me introduziu a esse mundo de guerreiros samurais, ninjas, golpes acrobáticos, tatames, quimonos. Eu era um ignorante completo no assunto. Não tinha o menor treinamento com aquela espada. Mas o ódio movido a ciúme é poderoso. A lâmina se ergueu em volta da minha cabeça, minhas pernas flexionadas, as duas mãos, com toda firmeza, segurando a leve e elegante arma, que desceu na diagonal, tocando-lhe a pele do ombro esquerdo, cortando-a, quebrando a clavícula, inutilizando o pulmão, dividindo o coração em duas partes perfeitamente iguais, conforme constaria no laudo, e parando a centímetros de cortar em dois aquele lindo corpo cor-de-rosa. O golpe, além de muito rápido, foi indubitavelmente fatal. Mas era vivo o aspecto dos seus olhos bem abertos, enquanto ela caía torta. O filete de fígado e pele que ainda ligava a parte de cima à de baixo se dobrou, de forma que ela caiu com o tórax para baixo e a barriga para cima. Linda, sua barriga.
Afastei-me do corpo, na direção de Linda, olhando para trás a cada três ou quatro passos. A imagem era triste, mesmo. O corpo era lavado e o sangue era levado pela chuva, insistente. A luz amarela do poste parecia focar de propósito os dois pedaços da moça. Afastei-me até não distingui-la mais, e comecei a pensar em Linda.
Eu ainda estava na calçada quando ela apareceu, adivinhando, talvez, o que se passara, mirando uma arma entre meus olhos, e disse:
– O que você quer?
– Comprei isto pra você, disse apresentando a espada na horizontal, diante de mim, segurando-a com as duas mãos. A chuva já havia lavado a lâmina. Ela soltou o ar que prendia nos pulmões pelo nervosismo, com uma expressão de lamento no rosto, olhando o presente com tristeza. Depois, uma dúvida bem pertinente lhe ocorreu:
– E a bainha?
Agora ela estava vestida. Não tinha vergonha ou arrependimento. Tinha medo de mim. Queria que eu fosse embora. Eu pedi para entrar. Ela abaixou a arma.
– O que deu em você? Perguntei, acreditando que era isso que uma pessoa normal, que não havia cometido um assassinato recentemente diria.
– Olha. Eu estou desolada. Desculpe pela arma. Mas é que eu não sabia como você iria reagir. Eu sei que é difícil. Eu ia lhe contar. Mas também não é fácil pra mim.
Eu entrei, pendurei o sobretudo, e ela fechou a porta enquanto dizia isso. Quando se virou, esperando ouvir qualquer coisa de mim, raivosa ou compreensiva, não ouviu nenhuma palavra. Somente sentiu a espada penetrar-lhe o abdômen, viu meus olhos calmos bem de perto, e ouviu o som seco da ponta da espada tocando a porta, depois de sair pelas suas costas.
Isso já faz alguns anos. Pensei em fugir, mas eu gostava demais da minha vidinha de médico medíocre para abandoná-la completamente. Também não queria ser preso, mas, na hesitação, fiquei lá, perdendo tempo, contemplando a cera fria da mulher que eu amo. Amo muito, toda, sempre, em cada vão momento, etc. Acredite.
Acabei dormindo na poltrona. Acordei pela manhã do dia seguinte, com o arrombamento da porta. Policiais mal educados. Era só bater.
* * *
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