Descrição
Ele não acordou muito feliz. Mas nem indisposto que não pudesse ir trabalhar. Não. O Protagonista se levantou como qualquer um, qualquer pessoa que se levanta por não haver razão para permanecer deitado. Abrem-se os olhos, levanta-se, sacode-se a preguiça, vive-se um pequeno e ordinário período de um dia acordado. Foi somente isto que estava fazendo o pai de três crianças não muito bonitas, mas, talvez, promissoras em seus estudos, naquela manhã de segunda-feira, num verão estafante de Recife, Brasil.
Eram três moças, a sua prole. A mais velha, Ana, gostava de Matemática e odiava Língua Portuguesa, a língua que melhor falava. A única língua que falava. Não tinha projeções, aos 12 anos, que apontassem para o aprendizado de mais do que isso. Mas nas ciências exatas, já planejava entrar para a história. A sua irmã Carol, com 11, não pensava nisso. Pensava no MSN. Nos amigos com quem conversava sempre pela Internet. Nos primos distantes que encontrou no Orkut, e com os quais mantinha contato. E em como convencer sua mãe a deixá-la conectada mais um pouco. Apesar dessas ocupações, ou mesmo por causa delas, impressionava professores na escola. Sua mãe recebia com um orgulho tão discreto quanto natural as impressões felizes dos mestres.
Uma mãe feliz. Uma dona de casa singular, deve-se dizer. Uma mulher machista. Já está provado empiricamente que essas mulheres machistas existem, de fato, a despeito da aparente incongruência do termo. Ela acreditava que lugar de mulher era mesmo em casa, com os filhos. Não queria saber de aprender a dirigir. Seu marido não concordava. Insistia que ela poderia trabalhar, quando quisesse. Que deveria providenciar sua habilitação para conduzir as crianças à escola, quando ele não pudesse. Ela simplesmente não queria. Queria permanecer em casa, com tempo para o que realmente gostava de fazer. Preguiça seria palavra dura e injusta para pendurar-lhe ao pescoço. Um bom leitor não é um preguiçoso. Ela lia várias horas por dia. Não gostava de televisão, porque sua vista doía após poucas horas diante dela. Não doía com as leituras. E ela já havia lido todos os grandes clássicos da literatura mundial. Além de acompanhar uma revista de fofoca, cujo nome não revelo para proteger a imagem de Anastácia, fiel esposa do Protagonista.
Sublinho que não há sombra de ironia naquele "fiel". Anastácia era mesmo absolutamente fiel. Amava perene e com calma sua família. Ana e Carol acreditavam que ela amava Marta, a caçula, com mais força. Mas toda criança mais velha pensa isso em algum momento. Não era verdade. Talvez, pelos cuidados proporcionais à sua idade, Marta tinha também essa impressão, mas era só impressão.
A despeito disso, Marta gostava mais do pai. As crianças não têm melindre para conter esse tipo de distinção. Elas admitem, sem pudor, que gostam mais deste ou daquele. Não só quando se trata de brinquedos, que não se ofendem com nada, mas pessoas. Os pais geralmente entendem. E vêem a preferência circunstancial se esvair ao longo dos meses. A preferência de Marta, entretanto, não havia desaparecido ainda. Ela ansiava a chegada do pai à noite. Despedia-se, dentro do carro, na porta da escola, com beijo e abraço calorosos, toda manhã. Essa pequena criança de 7 anos era a grande felicidade daquele pai. Grande mesmo.
Ele se preocupava ao extremo com ela, bem como com as outras três, incluindo sua esposa. Cuidava com lentidão, porque não há pressa para esses processos que duram a vida toda. Amor é palavra banal demais para resumir tantas brigas, tantas reconciliações, pequenas discussões, tanto enfado, seguido de empolgação, ora com coisa maior que o Universo, como quando Marta nasceu, ora coisa banal, como quando ela acordou de noite, com medo, porque sonhara algo pesado. Amor é simples. Uma vida, por mais ordinária que seja, não é simples que caiba numa palavra.
Naquela manhã, o Protagonista comia uma banana, estranhamente acompanhada por uma xícara de café com muito açúcar, quando ouviu a voz perigosamente suave de Anastácia:
- Leu seu e-mail ontem?
– Li. Por quê?
– Pensei que não tivesse lido.
– Por quê?
– Bom. Seu tio escreveu alguma coisa, e você geralmente comenta, você fala isso tudo, normalmente, essas coisas. Bom...
Ela falava assim. Rápido, com força, sem muita análise. Não que falasse besteiras, ou que despejasse discursos ininteligíveis nos outros, às vezes. Na verdade, o discurso era até bem claro. Ela sabia o que queria dizer. Só que dizia inúmeras vezes.
– Chegou um e-mail dele, o computador apitou, apitou, eu vi, não poderia não ver, estava lá diante de mim. Esperei você comentar qualquer coisa, coisa que você não fez. Você leu mesmo o e-mail?
– Sim, eu li, respondeu olhando preocupado para ela. Tudo bem, querida?
– Sim! – respondeu imediatamente, com a boca e com os olhos – sim, por que?
– Ele sentiu saudade, eu acho.
A resposta foi natural, mas não penetrou naturalmente os pensamentos medrosos de Anastácia. Foi como uma farpa. Uma prova, que parecia concreta e irrefutável, de que ele estava... disfarçando? Não podia ser. Ignorando sua desconfiança. Isso sim. Se posicionando acima da desconfiança, como quem espera que ela passe, ou morra sem o alimento da discórdia.
O incômodo dessa dama não faz o menor sentido para quem não conhece esse tio. É preciso, portanto, apresentar-lhe. Uma característica marcante, a primeira que enumero aqui, é um refinado olfato para a beleza feminina, de que se servia Rui, tio do Protagonista. Um perfeito mulherengo. Só isso já seria preocupação suficiente para qualquer esposa da estirpe de Anastácia. Em segundo lugar, Rui havia sido hippie. Provara de todas as substâncias psicoativas disponíveis à época. De uma só vez, em certa ocasião.
Andara muito mal acompanhado, por longos anos de festa e descompromisso. Não é preciso dizer que uma dessas companhias era o Protagonista. Mas depois de tanto tempo e de tantas filhas, Anastácia sabia que seu esposo era um homem sério. Ela não tinha dúvida. Nem sombra de dúvida. Mas não dormia bem quando ele se deparava com qualquer coisa que o fizesse lembrar do passado. Não era um passado ruim, de forma alguma. Pelo contrário. Era colorido demais. Em resumo, Anastácia lidava com um certo gênero de ciúme. O ciúme da festa que ele viveu antes dela, de que sempre se pode ter saudade.
Tudo isso preocupava Anastácia, enquanto seu marido se preparava para sair. As meninas já estavam no carro quando ele entrou, colocou o cinto, girou a chave e... nada. Nem sinal de vida. O carro simplesmente não respondeu. "Bateria..." pensou ele. "Talvez." Não sabia. Não sabia de mecânica mais do que a maioria de nós. As meninas ficaram preocupadas. Iam chegar atrasadas.
Desceram do carro, viram o pai olhar com a testa franzida para o motor, o capô aberto. Ele não fazia idéia do que poderia ser, além da bateria. E sendo mesmo a bateria, ele não sabia o que fazer a respeito. Olhou para o relógio de pulso, para as meninas, sorriu e disse: "vamos de ônibus".
Elas não sorriram.
Anastácia já acompanhava a cena da porta da cozinha, que dá para a garagem. Ficou triste. Depois que eles partiram, preocupada.
As meninas foram espremidas, duas em um só assento e Ana em pé. O pai ao lado. Nenhuma palavra. O resto do ônibus estava em silêncio também. Suavam muito, e à medida que o ônibus ia enchendo mais, o Protagonista ia se preocupando mais e mais com as pessoas que passavam por trás de Ana. O contato é inevitável. Ela se mostrava indiferente, mas o Protagonista preferia acreditar que sua filha estava incomodada. Ele sabia que não havia o que fazer a respeito, mas não conseguia parar de pensar nisso. "Se alguém abusar...", pensava. "E na volta? Eu não vou estar aqui. Se alguém for abusar, é melhor que tente agora".
As meninas desceram com dificuldade; gente demais. Ele se despediu, vermelho, suado. Sorriu, ainda assim. Elas não responderam. Marta, com sardas nas bochechas salientes, teria respondido com o mais lindo sorriso do mundo, na opinião de seu pai, mas ela não olhava pro rosto do Protagonista. Não viu que ele sorria. Estava atenta ao ambiente. Já tinha andado de ônibus antes, mas o pai se esforçava para não permitir. Pai zeloso. Não queria deixar que ônibus fosse hábito de sua família.
Viajou mais 40 minutos antes de descer, a 10 minutos de caminhada do trabalho. Chegou atrasado, como as meninas. O dia foi calmo e sem razões para ser registrado aqui, na opinião do Protagonista, opinião que vamos respeitar.
Ele deixou o trabalho às 7. Já havia falado com Anastácia ao telefone. As meninas tinham chegado bem. Marta estava mais cansada do que de costume, segundo a mãe, que pode ter criado certas impressões.
O Protagonista tomou o ônibus. Não esperou bastante, o que o deixou mais feliz. O dia chegava perto daquele momento bom, cheio de beijos e abraços daquelas quatro mulheres. Outra coisa boa, era que àquela hora aquela linha não costumava lotar. Não havia ninguém em pé. Havia alguns lugares vagos.
Alguns minutos depois de tomar o ônibus, o Protagonista viu subir quatro rapazes tensos, de olhos bem abertos e movimentos nervosos. Eles não se sentaram. Algumas pessoas carregaram o rosto de medo. O Protagonista demonstrava mais curiosidade e atenção, mas estava com medo, sim. "Por que eles não se sentam?".
Um dos homens gritou que era um assalto e brandiu uma arma. Os outros sacaram facas e começaram a coletar objetos de valor.
Uma senhora se recusou a entregar sua aliança. O Protagonista alisava a sua, enquanto olhava para a nuca da garota à sua frente; os pêlos da moça se eriçavam. A tensão aumentou. O homem esbravejou contra a senhora, que se gritava viúva, que não levariam a memória de seu marido, que a matariam antes, e outras coisas, cada vez mais raivosa e cada vez mais alto. Os outros assaltantes vieram ver e deliberar sobre o que estava acontecendo. A deliberação era aos gritos, e todos gritavam ao mesmo tempo. Apesar disso, era inteligível. Todos compreendiam tudo o que cada um ali queria. O Protagonista alisava a aliança olhando para a nuca daquela garota loira, de pêlos eriçados de medo. A coleta de objetos de valor não tinha chegado nela ainda. Como seria a expressão de seu rosto? Seria tão expressiva quanto aqueles pêlos loiros, finos, em pé, na sua nuca? Seria mais expressivo que os músculos do pescoço, tensos, duros, alicerçando sua cabeça olhando para frente?
A discussão e os gritos não duraram mais do que alguns segundos. Mas os segundos são longos nessas horas. Dá tempo de pensar tudo que for preciso, mais qualquer coisa inútil que divirta.
No meio dos gritos, aquela senhora foi agredida na cabeça, pela arma. Não desmaiou, mas se calou e caiu em prantos. A aliança, de ouro muito antigo, foi arrancada de seu dedo. Sua mão sangrava. O Protagonista sentiu um frio aterrorizante lhe subir a espinha; agora era sua nuca que estava arrepiada.
O agressor da senhora caiu no chão com um passageiro grande e forte encima dele, que teve o rosto chutado por outro assaltante, recuando. Outros dois homens se levantaram, do mesmo lado de lá. Ninguém por perto do Protagonista, que vendo as atenções se voltarem para o outro lado, ficou em pé também.
Por que? Não havia pensado no que estava fazendo. Tentaria dominar um dos assaltantes? Ajudar na resistência? Tentaria tomar a arma? Não pensou. Só ficou em pé, com muita adrenalina no sangue e suor na pele. Estava gelado.
O assaltante que estava armado ainda estava no chão, quando levantou a arma na direção do Protagonista e atirou.
Outras pessoas se levantaram. Mulheres também. A revolta foi grande. Os quatro foram dominados. Espancados.
Mas o Protagonista não viu isso. Viu o teto do veículo. Algumas cabeças que o observavam. Algumas mãos mais perto, que o ajudavam. Sentiu o cheiro do sangue.
"Ela não sabe dirigir", disse.
Às vezes, a morte não nos parece justa, não? Nem justa, nem lógica, nem anunciada por discursos suspirados. Às vezes, é só morte mesmo.
* * *
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